sexta-feira, 30 de abril de 2010

Podia ser aí. Contigo.















































Podia ser aí. Contigo. Com o teu corpo
ainda nu, ou vestido da luz que entra pelas
persianas velhas, trazendo a tremura
das folhas na trepadeira do quintal.

Podia ser de manhã, ou de madrugada,
sabendo que teria de te abraçar para que não
desses pelo frio, com o quarto ainda
húmido da noite, num fim de outono.

Podia não ter sido nunca, se não fossem
assim as coisas: a tua mão ao encontro da
minha, no tampo da mesa, como se fosse
aí que tudo se jogasse, entre duas mãos.










Nuno Júdice




















quarta-feira, 28 de abril de 2010

coisas desnecessárias


































Conduzir mas sem ter um acidente,
comprar massas e desodorizantes
e cortar as unhas às minhas filhas.
Madrugar outra vez e ter cuidado
em não dizer inconveniências,
esmerar-me na prosa de umas folhas
e estou-me nas tintas para elas,
retocar de vermelho cada face.
Lembrar-me da consulta ao pediatra,
responder ao correio, estender roupa,
declarar rendimentos, ler uns livros,
fazer umas chamadas telefónicas.
Bem gostaria de me dar ao luxo
de ter o tempo todo que quisesse
para fazer só coisas esquisitas,
coisas desnecessárias, prescindíveis
e, sobretudo, inúteis e patetas.
Por exemplo, amar-te com loucura.








amelia bautista





algures daqui

















terça-feira, 27 de abril de 2010

passar um sonho pelo rosto



































imagem, algures daqui









 



Pois lhe digo, minha Dona. É uma pena a senhora andar por aí fatigando seus olhos pelo mundo. Devia era, logo de manhã, passar um sonho pelo rosto. É isso que impede o tempo e atrasa a ruga. Sabe o que se faz? Estende-se aí na areia, oblonga-se deitadinha, estica a alma na diagonal. Depois, fica assim, caladita, rentinha ao chão, até sentir a terra se enamorar de si. Digo-lhe, Dona: quando ficamos calados, igual a uma pedra, acabamos por escutar os sotaques da terra. A senhora num certo momento, há-de ouvir um chão marinho, faz conta é um mar sob a pele do chão. Aproveita esse embalo, Dona Luarmina.Eu tiro vantagens desses silêncios submarinos. São eles que me fazem adormecer ainda hoje. Sou criança dele, do mar















mia couto, mar me quer
















sábado, 24 de abril de 2010

aqueles que têm nome e nos telefonam














aqueles que têm nome e nos telefonam
um dia emagrecem - partem
deixam-nos dobrados ao abandono
no interior duma dor inútil muda
e voraz

arquivámos o amor no abismo do tempo
e para lá da pele negra do desgosto
pressentimos vivo
o passageiro ardente das areias - o viajante
que irradia um cheiro a violetas nocturnas

acendemos então uma labareda nos dedos
acordamos trémulos confusos - a mão queimada
junto ao coração

e mais nada se move na centrifugação
dos segundos - tudo nos falta

nem a vida nem o que dela resta nos consola
e a ausência fulgura na aurora das manhãs
e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos
o rumor do corpo a encher-se de mágoa

assim guardamos as nuvens breves os gestos
os invernos o repouso a sonolência
o vento
arrastando para longe as imagens difusas
daqueles que amámos mas não voltaram
a telefonar











Al Berto

sexta-feira, 23 de abril de 2010

soledad






























do pedro, a imagem


















Yo no sé de pájaros,
no conozco la historia del fuego.
Pero creo que mi soledad debería tener alas.



















Alejandra Pizarnik
















terça-feira, 20 de abril de 2010

de súbito





























imagem algures daqui







E de súbito desaba o silêncio.

É um silêncio sem ti,

sem álamos,

sem luas.



Só nas minhas mãos

ouço a música das tuas.
















Eugénio de Andrade













domingo, 18 de abril de 2010

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras




























Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.



Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.



Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.



Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva.









José Gomes Ferreira






















sexta-feira, 16 de abril de 2010

o teu silêncio
































 


 




Toda a minha vida me escutaste em silêncio.
Tinhas à disposição as vozes enormes
do vento, das águas, do trovão, do pintassilgo —
mas nunca dei por que as usasses comigo.
Envelheci enredado
nas teias dessa mudez.
Ganhei a industriosa astúcia dos velhos
à custa de perder a candura original,
li com cada vez mais desenganada luz
o teu silêncio.
Assim, a princípio achava-o cúmplice,
quente e generoso. Um silêncio
de quem concorda e apoia,
e não acha necessário proclamá-lo.
Com a continuação,
começou-me a parecer o teu silêncio
já só condescendência. O silêncio
de alguém que se dispensa de mostrar
desacordo por simples cortesia.




A.M. Pires Cabral






imagem

































 



terça-feira, 13 de abril de 2010

Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos


















Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.
No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida
foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama
e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.



























domingo, 11 de abril de 2010

Se me puderes ouvir





O poder ainda puro das tuas mãos
é mesmo agora o que mais me comove
descobrem devagar um destino que passa
e não passa por aqui

à mesa do café trocamos palavras
que trazem harmonias
tantas vezes negadas:
aquilo que nem ao vento sequer
segredamos

mas se hoje me puderes ouvir
recomeça, medita numa viagem longa
ou num amor
talvez o mais belo.









José Tolentino Mendonça




















sábado, 10 de abril de 2010

cansadas de esperar por outro dia

































 


A verdade, por muito que nos custe,
é que nunca houve ninguém
por detrás da janela
do ponto mais alto da montanha.

Se é que podemos falar
de montanha, da janela onde
por vezes chegavam,
os sinos indolentes do amor,
na sua claríssima estranheza.

E as coisas que nos matam,
incendeiam-se,
cansadas de esperar por outro dia.














Manuel de Freitas

































terça-feira, 6 de abril de 2010

as minhas mãos sem as tuas
























Nunca houve palavras para gritar a tua ausência.
Apenas o coração
pulsando a solidão antes de ti
quando o teu rosto doía no meu rosto e eu descobri as minhas mãos
sem as tuas...





















Joaquim Pessoa


















domingo, 4 de abril de 2010

a tua ausência dói















































Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais – um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
tivessem roubado o tacto. São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser
complicadas, quando nos damos conta da
diferença entre o sonho e a realidade. Porém,
é o sonho que me traz a tua memória; e a
realidade aproxima-me de ti, agora que
os dias correm mais depressa, e as palavras
ficam presas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim – e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.








 
Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês












sexta-feira, 2 de abril de 2010

ti

























Encostei-me a ti,
sabendo que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem
depus a minha vida em ti.
Como sabia bem tudo isso,
e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar,
quando caí.







Cecília Meireles





























quinta-feira, 1 de abril de 2010

Aqui, deposta enfim a minha imagem




 



 


























Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nús, em sangue, embalando a própria dor
em frente ás madrugadas do amor.

Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.

Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e que é passagem.
No interior das coisas canto nua,

Aqui livre sou eu - eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos
Aqui sou eu em tudo quanto amei.

Não pelo meu ser que só atravessei,
Não pelo meu rumor que só perdi,
Não pelos incertos actos que vivi,

Mas por tudo de quanto ressoei,
E em cujo amor de amor me eternizei.















sophia de Mello Breyner andersen