terça-feira, 29 de junho de 2010

levo comigo tudo



























De um e outro lado do que sou,
da luz e da obscuridade,
do ouro e do pó,
ouço pedirem-me que escolha;
e deixe para trás a inquietação,
a dor,
um peso de não sei
que ansiedade.

Mas levo comigo tudo
o que recuso.
Sinto colar-se-me às costas
um resto de noite;
e não sei voltar-me
para a frente, onde
amanhece.










Nuno Júdice





























sábado, 26 de junho de 2010

grata






































Estou-te grata por não me protegeres
por não te ter quando de ti preciso
por não seres firmamento para a Ursa Menor
nem bengala e bastão para me defenderes.

Por cada pontapé te estou agradecida
que me faz avançar para mim
no meu caminho. Tenho que o andar só.
Estou-te grata. Facilitas-me a vida.

Estou-te grata pela tua cara linda
que para mim é tudo e nada mais.
E também por não ter que agradecer-te
senão este poema e alguns outros ainda.








 
Ulla Hahn





























Fiz de ti um caminho de palavras inúteis




































Fiz de ti um caminho de palavras inúteis
e estremeço ao cruzar de um passo que me
parece teu.
levo-te comigo embora de nada me sirvas,
nem para agarrar a mão ou apoiar o braço.
Aprendo, acasalando a angústia à ausência
e o sentido a tudo o que não tem, que os dias
movem-se por entre assopros desesperados e risos
que são livres e que a noite se espraia
sem entusiasmos, magoando-me os seios.
É assim que percorro as ruas e que
me deito. A viagem continua
a passear-me por dentro de um silêncio
que estala como o cristal ou as lágrimas.
de nada serve contar as ESTRELAS e os
bichos constelados, se não partilhamos esse
lúdico brincar. o Céu tem um nome na
tua língua e outro aqui.
A luz que nos observa e nos revela deixou de
ser a mesma. Foi um adeus perfeito a tudo
o que sorria à nossa volta.












Lídia Martinez, Um adeus perfeito




































quinta-feira, 24 de junho de 2010

solamente tu mano























Mira, no pido mucho,
solamente tu mano, tenerla
como un sapito que duerme así contento...
Así la tomo y la sostengo, como
si de ello dependiera
muchísimo el mundo,
la sucesión de las cuatro estaciones,
el canto de los gallos,
el amor de los hombres









Julio Cortázar







imagem













e assim eu sei que um sorriso é precioso








































a morte é uma coisa muito pouca
em nada se compara ao crescimento das constelações
a morte não respira nem se expande desde o centro
como fazem as estações desde o coração da terra

e assim eu sei que um sorriso é precioso
porque respira e alarga-se dentro dos olhos
e quando chega ao lugar em que a mão se abre
é já uma forma de sossego uma lua coberta de luar
um modo certo de trocar nomes em dias de excepção














vasco gato













terça-feira, 22 de junho de 2010

é tão longe






































E ainda me atrevo a amar
o som da luz numa hora morta
a cor do tempo num muro abandonado.



No meu olhar perdi tudo.
É tão longe pedir. Tão perto saber que não há.














Alejandra Pizarnik

































cansaço










































O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...











Fernando Pessoa, Álvaro de Campos



















domingo, 20 de junho de 2010

preciso que me digas agora uma coisa inocente






































Estendi a mão por qualquer coisa inocente
uma pedra, um fio de erva, um milagre
preciso que me digas agora
uma coisa inocente

Não uses palavras
qualquer palavra que me digas há-de doer
pelo menos mil anos
não te prepares, não desejes os detalhes
preciso que docemente o vento
o longínquo e o próximo
espalhe o amor que não teme

Não uses palavras
se me segredas
aquilo que no fundo das nossas mentiras
se tornou uma verdade sublime.








 
José Tolentino Mendonça



























sábado, 19 de junho de 2010

poderia ter escrito o meu nome no teu nome


















 



























Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe
Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrassem
No vazio de ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida rompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti.












Daniel Faria











sexta-feira, 18 de junho de 2010

nada mudou























Nada mudou. Ao fim de tantos anos, o meu
passado é ainda o mesmo passado - nenhum
rosto diferente para desviar o rio da memória,
nenhum nome depois. Para te esquecer,

devia ter partido há muito tempo, como viajam
as aves de verão em verão. E tentei; mas as malas
abertas sobre a cama eram livros abertos, e eu
nunca fechei um livro antes do fim. Por ter

ficado, nada mudou jamais - e o meu passado é
ainda o nosso passado; e o rosto que tinha antes
de me deixares é o que o espelho me devolve no
presente...










 
Maria do Rosário Pedreira












Cada um de nós é por enquanto a vida





















Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.









jose saramago


(16-11-1922 / 18-06-2010)

















por ter roçado a tua alma






































Não digo que te amei por ter possuído o teu corpo, mas sim por ter roçado a tua alma. Se pudesse estar apenas perto de ti, a ouvir a tua voz e a demorar o meu olhar sobre o teu, ter-te-ia amado na mesma... Fiquei presa no que está para lá do visível; enredada entre as folhas da tua verdadeira essência.







Possidónio Cachapa










por isso te encontro












Posso beber o amor pelo copo dos teus
lábios?» O disco chega ao fim; um ruído de rua
entra pela janela; não sei se ainda é dia,
ou se a noite começa. Mas o mundo
não interfere no equilíbrio frágil
das nossas vidas. Este copo não se esvazia; e
os teus olhos levam-me à fronteira
do sonho, para que a passe, e entre
contigo num país de nuvem. O meu passaporte
são as tuas mãos; o mapa que nos guia,
a respiração incerta do desejo. «Por
isso me perco», dizes. «Por isso te
encontro», respondo. E a noite que
nos separa é o dia que nos reúne.









Nuno Judice












quinta-feira, 17 de junho de 2010

também o sol e os pássaros































A sensação que tens
é de que tudo
quanto dizes já o leste
noutros livros. Mas
depois consideras: também
o sol e os pássaros
repetem todos os dias
a mesma canção.











Albano Martins











foi tão bom ficar preso a nenhumas esperanças




























Não hei-de conseguir falar contigo, é sempre
difícil. Uma imagem
cintila de repente e lá estou eu
nesse baile de máscaras - revi-o
mais de dez vezes. Foi tão bom
ficar preso a nenhumas esperanças, sentir
o vento muito frio.

Percorri os desertos, o inverno
era a estação preferida e sobretudo
a noite. Viajava
entre corpos e alma, esse mundo
parecia não ter fim; o seu limite
era como um segredo, um olhar
desafiando a morte enquanto esperava
por novas ilusões.

Um telefonema é fácil de fazer,
podemos encontrar-nos, conversar,
fingir que existe amor ou qualquer outra
invisível certeza, mas não há
lugar algum para fugir-me ainda,
ninguém nas ruas cada vez mais longas,
e mal vislumbro sob o azul da névoa
os fragmentos do meu coração.






 
Fernando Pinto do Amaral














quarta-feira, 16 de junho de 2010

vives porque te penso
































Penso que tu mesmo cresces
Quando te penso. E digo sem cerimonias
Que vives porque te penso.
Se acaso não te pensasse
Que fogo se avivaria não havendo lenha?
E se não houvesse boca
Por que o trigo cresceria?

Penso que o coração
Tem alimento na Idéia.
Teu alimento é uma serva
Que bem te serve à mão cheia.
Se tu dormes ela escreve
Acordes que te nomeiam.
Abre teus olhos, meu Deus,
Como de mim a tua fome.

Abre a tua boca. E grita este nome meu.







hilda hilst










terça-feira, 15 de junho de 2010

e corro para a rua

























hesito muito antes da palavra.
porque um precipício se abre nela
e não tem sentido,vibra apenas.
porque pode ser a morte
ou o nascimento para um lugar
de cores e fadas e barcos de sol.
porque me doem as mãos
cada vez que tento segurar
o mundo em traços redondos quadrados.



por isso te digo:hesito e morro e nasço.
e corro para a rua com a força de quem
vai anunciar gritar chamar dizer.
mas lá fora sorrio apenas
enquanto caminho para um banco
de jardim, devagarinho,
como se por um momento
eu soubesse o nome de tudo
e tudo tivesse o mesmo nome.







vasco gato