quarta-feira, 28 de julho de 2010

...da pele...














































Tornamo-nos impermeáveis na solidão:
dentro da pele não viaja ninguém;
fora da pele ninguém nos vê passar.










Jesús Jiménez Domínguez


























terça-feira, 27 de julho de 2010

Não digas que conheces minhas dores





























Não digas que conheces minhas dores
Deixas-me com meus desamparos
Não sabes do estio dos meus lábios
E das marcas que abraçam minha solidão
Pedaços de ti que arranham meu corpo

Não penses que é melhor assim
Nem pressuponhas que a saudade finda
Como se o teu silêncio e deserção
Apagassem o perfume do desejo
Ou a inquietude de sentir-te em mim

Não me obrigues a entender a crueldade
Prefiro ignorar esta estrada que dizes destino
Não quero dar-te ao esquecimento dos sentidos
Nada sei destas trilhas em que sucumbes
Soterrado pelos passos que te negas

Não me convides às tuas renúncias
Nem me batizes nestas águas
Que sangram e definham teu peito
Tenho ardores de vida que me cingem
Férteis à espera que te resgates de ti

Não me amputes de mim, dos meus sonhos
Nem me indiques tuas confortáveis saídas
Prefiro o rasgar de entranhas, a febre do sentir
Ao discurso patético do conformismo
Lanço à fogueira, a impotência, o desistir

Sim, hoje estou em carne viva
Palavras à flor da pele, despindo-se
Ainda que seja este um grito confinado
Ao subterrâneo do meu mundo
Este que já não te alcança.










Fernanda Guimarães











sábado, 24 de julho de 2010

cada porta cede dentro de mim





















 
























Quando os relógios batem tão perto
como dentro do próprio coração,
e as coisas com vozes débeis
perguntam umas às outras:
- Estás aí? - :



então não sou o mesmo que de manhã acordou,
a noite dá-me um nome
que nenhum daqueles a quem de dia falei
ouviria sem angústia -



Cada porta
cede dentro de mim...









Rainer Maria Rilke











sexta-feira, 23 de julho de 2010

prefiro não saber como te chamas






























Deita-te aqui - esta noite, dentro de mim,
está tanto frio. Se fores capaz, cobre-me de
beijos: talvez assim eu possa esquecer para
sempre quem me matou de amor, ou morrer
de uma vez sem me lembrar. Isso, abraça-me

também: onde os teus dedos tocarem há uma
ferida que o tempo não consegue transportar.
Mas fecho os olhos, se tu não te importares, e
finjo que essa dor é uma mentira. Claro, o que

quiseres está bem - tudo, ou qualquer coisa,
ou mesmo nada serve, desde que o frio fique
no laço das tuas mãos e não regresse ao corpo
que te deixo agora sepultar. Não sentes frio, tu,

dentro de mim? Nunca nevou de madrugada no
teu quarto? Que país é o teu? Que idade tens?
Não, prefiro não saber como te chamas.





 
Maria do Rosário Pedreira






















segunda-feira, 19 de julho de 2010

tropeço na luz, como um cego








































É Março ou Abril?
É um dia de sol
perto do mar,
é um dia
em que todo o meu sangue
é orvalho e carícia.

De que cor te vestiste?
De madrugada ou limão?
Que nuvens olhas, ou colinas
altas,
enquanto afastas o rosto
das palavras que escrevo
de pé, exigindo
o teu amor?

É um dia de Maio?
É um dia em que tropeço
no ar
à procura do azul dos teus olhos,
em que a tua voz
dentro de mim pergunta,
insiste:
Se te fué la melancolia,
amigo mío del alma?

É Junho? É Setembro?
É um dia
em que estou carregado de ti
ou de frutos,
e tropeço na luz, como um cego,
a procurar-te.












Eugénio de Andrade































sábado, 17 de julho de 2010

essa mulher





















 

















uma distracção no tempo





















Quero definir-te o que é este sentimento:
o que pertence à esfera daquilo que a razão
não domina, ou simplesmente nasce da noite,
e de tudo o que a envolve. Falo de uma
íntima relação entre os seres, de emoções
que se transmitem para além de palavras e
conceitos, de um encontro de corpos na
esfera do segredo. Dir-me-ás: "Para que
precisas de uma explicação para o amor?"
Mas é a sua inutilidade que me interessa;
a dádiva, o simples dizer que as coisas são
assim porque são, e para além disso tudo
se complica. Podes, então, rir do que te
digo; ou simplesmente dizer-me que as
palavras nada substituem, e que tudo o que
elas nos dão está a mais. Mas o amor
pertence-nos. Não o podemos deitar fora;
nem fingir que não existe, como não existe
o infinito, a transcendência, a abstracção
divina, para quem só crê no concreto. É
verdade que o amor não se vê: o que vejo
são os teus olhos, a ternura súbita das
suas pálpebras, e o que elas abrem e
escondem numa hesitação de luz. Eis, então,
o que define este sentimento: um intervalo,
uma distracção do tempo, a divina abstracção
do infinito na transcendência do real.












 
Nuno Júdice


















terça-feira, 13 de julho de 2010

mon emouvant amour


















 





















A song sung in sign language about a man who is deeply in love with a deaf-mute woman. He tries to show her he loves her and communicates in broken sign language to her. This great song is called "Mon émouvant amour," or My Moving Love. From Charles Aznavour's Carnegie Hall concert DVD.










 



segunda-feira, 12 de julho de 2010

Como fazer-te saber que há sempre tempo?












 
















Como fazer-te saber que há sempre tempo?



Que temos que buscá-lo e dá-lo…
Que ninguém estabelece normas, senão a vida…
Que a vida sem certas normas perde formas…
Que a forma não se perde com abrirmo-nos…
Que abrirmo-nos não é amar indiscriminadamente…
Que não é proibido amar…
Que também se pode odiar…
Que a agressão porque sim, fere muito…
Que as feridas fecham-se…
Que as portas não devem fechar-se…
Que a maior porta é o afecto…
Que os afectos definem-nos…
Que definir-se não é remar contra a corrente…
Que não quanto mais se carrega no traço mais se desenha…
Que negar palavras é abrir distâncias…
Que encontrar-se é lindo…
Que o sexo faz parte da lindeza da vida…
Que a vida parte do sexo…
Que o porquê das crianças tem o seu porquê…
Que querer saber de alguém não é só curiosidade…
Que saber tudo de todos é curiosidade malsã…
Que nunca é demais agradecer…
Que autodeterminação não é fazer as coisas sozinho…
Que ninguém quer estar só…
Que para não estar só há que dar…
Que para dar devemos antes receber…
Que para nos darem há também que saber pedir…
Que saber pedir não é oferecer-se…
Que oferecer-se, em definitivo, não é querer-se…
Que para nos quererem devemos mostrar quem somos…
Que para alguém ser é preciso dar-lhe ajuda…
Que ajudar é poder dar ânimo e apoiar…
Que adular não é apoiar…
Que adular é tão pernicioso como virar a cara…
Que as coisas cara a cara são honestas…
Que ninguém é honesto por não roubar…
Que quando não se tira prazer das coisas não se vive…
Que para sentir a vida temos de esquecer que existe a morte…
Que se pode estar morto em vida…
Que sentimos com o corpo e a mente…
Que com os ouvidos se escuta…
Que custa ser sensível e não se ferir…
Que ferir-se não é sangrar…
Que para não nos ferirmos levantamos muros…
Que melhor seria fazer pontes…
Que por elas se vai à outra margem e ninguém volta…
Que voltar não implica retroceder…
Que retroceder também pode ser avançar…
Que não é por muito avançar que se amanhece mais perto do sol…



Como fazer-te saber que ninguém estabelece normas, senão a vida?











Mario Benedetti




















sexta-feira, 9 de julho de 2010

não é fácil


































Não é fácil resistir a tudo
o que nos roubam.
Tempo, memória, mundo.
Toleramos o insuportável
com insuportáveis venenos.
Até melhor ordem, se houver.

Noutras casas (lembro-me)
éramos mais, bebíamos
apressadamente a juventude.
Mas a vida — chamemos-lhe
assim — separa os que se juntam,
gosta de abismos fáceis.









Manuel de Freitas









quarta-feira, 7 de julho de 2010

A pele é o espelho da memória





































Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele, onde a memória os move.
Tacteiam, impolutos. Tantas vezes
o suor os traz consigo da memória,
que não tenho na pele poro através
do qual eles não procurem sair quando transpiro.

A pele é o espelho da memória.








Luís Miguel Nava











domingo, 4 de julho de 2010

é como acordar



























é como acordar.

mas aquilo que flúi quando acordas,
aquilo que te liga os dias donde vens
aos dias a que queres chegar,
aquela abundância de razão e de consciência
que te dá sentido à vida...

esse movimento está ausente
e sentes-te como um fumo.

qualquer coisa te pode esmagar,
qualquer gesto te pode transportar
a um chão que não existe,
a um caminho
que os teus passos não sabem percorrer.

e as tuas mãos ficam húmidas desse delírio.
e os olhos caem-te aflitos no lugar da doçura ausente.

e ficas sem gritar,
ergues-te sobre esse dia que chega
e tudo é maior do que possas ter para te agarrar.
e deixas-te ir, etéreo como um fumo…

podia ser esse o minuto da loucura.
podia ser esse o momento de abraçar a luz
e estalar docemente numa noite qualquer.

como uma fenda de fogo,
como um punhal de lume
que enfim te rasgasse o mundo.







gil t. sousa
falso lugar
2004





















sábado, 3 de julho de 2010

só te falta um pretexto para seres feliz





































tudo no teu sorriso diz
que só te falta um pretexto
para seres feliz

uma querela talvez chegasse
ou um pequeno pastor que passasse
na estrada, com suas ovelhas

um riso, um pormenor
que no momento se pousasse
e o tornasse melhor

eu
vou pensando em coisas velhas
-sem sombra de desdém!-
na vida
naquele lampejo fugace
que o teu sorriso já não tem

e que é do passado
porque a nossa grande sabedoria
não soube tratar ente tão delicado

e declina, o dia

o pequeno pastor já não vem








mário cesariny






















Gosto das palavras exactas











































Gosto das palavras exactas, as que acertam
com o centro das coisas, e quando as encontro
é como se as coisas saíssem de dentro delas.

Essas palavras são duras como os objectos
que designam, pedra, tronco, ferro, o vidro
de espelhos quebrados com o calor da tarde.

Tento incendiá-las quando escrevo, como se
o fogo saísse de dentro da frase, e se espalhasse
pelo campo da página numa devastação de sílabas.

Então, atiro sobre as palavras outras palavras,
água, pó, terra, o ar seco do verão, para que a voz
não fique queimada nesta paisagem negra.

Recolho os restos, os adjectivos, os advérbios,
artigos, preposições, para que só as palavras que indicam
as coisas fiquem no lugar que já tinham.

Pouco importa que as frases percam o sentido. O
que fica são os nomes das coisas, para que as coisas saiam
de dentro deles e as possamos ver nos seus lugares.

 
Nuno Júdice