segunda-feira, 29 de novembro de 2010

quando partiste










 







 










Nada me pertenceu - nem o vestido indecente
que pedi emprestado para te oferecer os seios, nem
os seios, que eram já teus muito antes do vestido.

O sorriso que devassou brevemente o meu rosto não
me pertenceu; porque ninguém o viu antes de ti,
nem o espelho se convenceu a devolver-mo.

Todas as coisas que a casa guardou quando partiste não
me pertenceram; porque, ao tocar-lhe nos dias mais
cinzentos, sinto que é pelo calor dos teus dedos que ainda
gritam; e mesmo a cama onde só teu corpo era bem-vindo
nunca chegou a ser inteiramente minha, pois, de contrário,
encontraria nela o meu lugar, e não o teu vazio.

Tu não me pertenceste - e, se uma vez acreditei que
acontecias dentro do meu corpo, das outras vi-te abraçar a
solidão com tanto ardor que concluí ser a memória quem
te mantinha vivo. O meu coração, contudo, sempre

te pertenceu - e a mão desesperada que o procura não
sente bater longe do teu peito. E mesmo os poemas todos
que escrevi não me pertenceram, porque essa vida
que pulsava no papel levaste-a tu contigo na hora
em que te foste - e a que tenho agora é mais
branca e vazia do que a morte, não é vida nem nada

que eu queira alguma vez que me pertença.







Maria do Rosário Pedreira



























quarta-feira, 24 de novembro de 2010

não te vejo nunca mais



























Exactamente como foi, o medo de me enganar
mais tarde na memória - é tudo o que me resta: estar
de noite às escuras a pensar em ti

E se me lembro mal, se troco as vezes, naquela
quinta-feira o dia do amor em vez de ser
na quarta, o erro surge-me gigante,
um peso carregado como Atlas

Por isso é que preciso de lembrar coisas
exactas, como aconteceu tudo; não só
transpor depois na ficção recolhida, sou eu
que te preciso e dos teus dias
que me foram meus

Lembrar-me exactamente como foi, o que usei
nesse dia e o que usei no outro, até que horas
tudo, se havia gente ou não
e em que dia. Porque as palavras depois se
reconstroem

O que se disse então torna-se fácil.
Assim dito parece coisa pouca,
lugar comum e
fácil, mas as noites são grandes

e lembrar-se
exactamente,
de uma forma correcta

é-me tão importante
dentro das noites a pensar em ti
sabendo: não te vejo nunca mais



 

Ana Luisa Amaral














sexta-feira, 19 de novembro de 2010

lugares mal situados





















Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar




Daniel Faria




daqui, com pena da perda









terça-feira, 16 de novembro de 2010

Dá-me tu um nome para eu poder ficar contigo...


























-Vou guardar as tuas mãos na paixão que tenho por ti,
mas não te posso revelar o meu nome, nem precisas de o saber.
Chama-me o que quiseres, dá-me um nome para que possamos amarmo-nos.
Aquele que tinha perdi-o no caminho até aqui.
Pertencia a outra paixão, e já a esqueci.
Dá-me tu um nome para eu poder ficar contigo...






 
Al berto
























terça-feira, 9 de novembro de 2010

Se não me amas, porque me avisas da dor?








 

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Se te pergunto o caminho,
falas-me das rochas que mortificam o dorso das montanhas;
e do ranger da água no galope dos rios;
e das nuvens que coroam as paisagens.

Contas que a noite geme nas fendas dos penhascos
porque as cidades apodrecem junto às margens;
que o vento é um chicote que desaba os chapéus;
que a terra treme, que o nevoeiro cega;
e que as casas onde o medo se extinguia na longa bainha do
vestido da mãe cederam ao peso das mágoas dentro delas.

E, se assim mesmo quero ir, dizes que os meus passos
se perderiam no comprimento das sombras – que não há
mapas para os sonhos de quem morre de amor;
e que os ramos debruçados dos muros em ruínas rasgariam
a carne – como um sorriso rasga o tecido de um rosto.

Se não me amas, porque me avisas da dor?









Maria do Rosário Pedreira

















sábado, 6 de novembro de 2010

Já deve ser tarde pra questionar teu nome
































O tempo parou-me no pulso. Já deve ser tarde
pra questionar teu nome, se donde emergias é corrente
usar facas no__espaço dos olhos, ou é coisa de génio.
Tantas vezes desejei esconder-me atrás de uma música
e gritar até ao fim, que nenhuma névoa apaga
este eco - antes adensa
a tempestade, e os barcos que se lançaram no rio
estão longe de afogar a distância entre nós.
Agora abro a janela para que algo se mova,
assisto à dança de vultos esmagando-se sob meus pés
enquanto aguardo pelo desmoronamento dos dias.
Não, não me arrasto a lugar algum.
Permaneço nesta varanda, defronte ao rigor
e à estação onde esqueci as palavras
que diria se voltássemos a cruzar o mesmo destino.

Dantes percorria toda aquela área
debaixo do sol, desvendava novos caminhos
e penetrava no emaranhado de histórias
que os pescadores remendam e me prendia
até ao derradeiro fio de luz, como se minhas
as expedições e a dor de quem fica em terra, como se meu coração
fosse a bússola pra alcançar o desnorte das emoções.
Só a escuridão e a ira dos cães me empurravam
de volta à realidade. Girava pela aldeia, acostava
à porta de um qualquer amigo imaginário,
que comigo dividia o torpor, e só caía
na cama quando os homens de calças brancas
partiam ao pão nosso de cada dia.
Um dia acordei e havia perdido as mãos
que tantos anos apararam as reincidentes quedas.
Lancei-me aos excessos e procurei passagem
pra uma viagem tão extensa quanto a noite,
quando esse golpe me cortou os passos
inquirindo se era a hora - mas deve ser
tarde, muito tarde pra regressar.







Luís Filipe Nunes























quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Peço a Paz





























Peço a paz
e o silêncio

A paz dos frutos
e a música
de suas sementes
abertas ao vento

Peço a paz
e meus pulsos traçam na chuva
um rosto e um pão

Peço a paz
silenciosamente
a paz a madrugada em cada ovo aberto
aos passos leves da morte

A paz peço
a paz apenas
o repouso da luta no barro das mãos
uma língua sensível ao sabor do vinho
a paz clara
a paz quotidiana
dos actos que nos cobrem
de lama e sol

Peço a paz e o
silêncio








Casimiro de Brito












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