domingo, 22 de abril de 2012

ter de sorrir: um oceano que nos queima




















fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.




josé luís peixoto










domingo, 15 de abril de 2012

vou levar-te o mar na concha das minhas mãos




















sei que nunca viste o oceano,
que nunca olhaste a onda sobre a onda,
que nunca fizeste castelos para o mar ser forte,

mas sei que já viste o coração das coisas,
que já tocaste a ferida nos nossos braços,
que já escreveste para sempre o nome da terra.

por isso te digo que vou levar-te o mar
na concha das minhas mãos, azulíssimo,
para que nele descubras o meu nome
entre os seixos os búzios os rostos que já tive.





vasco gato


















quarta-feira, 11 de abril de 2012

palavras são meu jeito mais secreto de calar












se te pareço ausente, não creias:
hora a hora meu amor agarra-se aos teus braços,
hora a hora meu desejo revolve estes escombros,
e escorrem dos meus olhos mais promessas.

não acredites neste breve sono;
não dês valor maior ao meu silêncio;
e se leres recados numa folha branca,
não creias também: é preciso encostar
teus lábios em meus lábios para ouvir.

nem acredites se pensas que te falo:
palavras
são meu jeito mais secreto de calar.




lya luft







terça-feira, 10 de abril de 2012

dá-me rosas



















(…)
Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar, 
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo. 
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se 
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma, 
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo. 

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne, 
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha, 
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom. 
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada, 
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes, 
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste. 
Seja. 

A mulher que chora baixinho 
Entre o ruído da multidão em vivas... 
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito, 
Cheio de individualidade para quem repara... 
O arcanjo isolado, escultura numa catedral, 
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã, 
Tudo isto tende para o mesmo centro, 
Busca encontrar-se e fundir-se 
Na minha alma. 

Eu adoro todas as coisas 
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite. 
Tenho pela vida um interesse ávido 
Que busca compreendê-la sentindo-a muito. 
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo, 
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas, 
Para aumentar com isso a minha personalidade. 

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio 
E a minha ambição era trazer o universo ao colo 
Como uma criança a quem a ama beija. 
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras, 
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo 
Do que as que vi ou verei. 
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações. 
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos. 
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca. 

Dá-me lírios, lírios, 
E rosas também. 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também, 
Crisântemos, dálias, 
Violetas, e os girassóis 
Acima de todas as flores... 

Deita-me às mancheias, 
Por cima da alma, 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também... 

Meu coração chora 
Na sombra dos parques, 
Não tem quem o console 
Verdadeiramente, 

Excepto a própria sombra dos parques 
Entrando-me na alma, 
Através do pranto. 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também... 

Minha dor é velha 
Como um frasco de essência cheio de pó. 
Minha dor é inútil 
Como uma gaiola numa terra onde não há aves, 
E minha dor é silenciosa e triste 
Como a parte da praia onde o mar não chega. 
Chego às janelas 
Dos palácios arruinados 
E cismo de dentro para fora 
Para me consolar do presente. 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também... 

Mas por mais rosas e lírios que me dês, 
Eu nunca acharei que a vida é bastante. 
Faltar-me-á sempre qualquer coisa, 
Sobrar-me-á sempre de que desejar, 
Como um palco deserto. 

Por isso, não te importes com o que penso, 
E muito embora o que eu te peça 
Te pareça que não quer dizer nada, 
Minha pobre criança tísica, 
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios, 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também... 






Álvaro de Campos









domingo, 8 de abril de 2012

o meu desejo de ti são lágrimas por dentro




























Olho-te pelo reflexo 
Do vidro 
E o coração da noite 

E o meu desejo de ti 
São lágrimas por dentro, 
Tão doídas e fundas 
Que se não fosse: 

o tempo de viver; 
e a gente em social desencontrado; 
e se tivesse a força; 
e a janela ao meu lado 
fosse alta e oportuna, 

invadia de amor o teu reflexo 
e em estilhaços de vidro 
mergulhava em ti. 




Ana Luísa Amaral















só isso



















não há grandes poetas nem grandes poemas; há palavras que nos agarram no momento certo. só isso. 




gil t. sousa











sexta-feira, 6 de abril de 2012

haverá talvez um poema

































haverá talvez um modo de amanhecer
que revele nos olhos o secreto ardor
com que se levanta o trigo enorme.


haverá talvez um lago que a noite não toque
e de dia em dia, como ontem, como amanhã,
cante a mulher que ali foi ver nascer o filho.


haverá talvez um suor que não o do sacrifício
e com o qual a pele cintile como uma borboleta
que vem descendo o céu até à flor dos teus lábios.


haverá talvez uma fala onde nos poderemos encontrar
sem que a tua mão esqueça a minha, sem que o sorriso
esconda o vazio, uma fala que só possa e saiba dizer nós.


haverá talvez um poema em que o soluço aperte as veias
como o rio aperta o mar, um poema em que eu e tu
dormimos sobre o luminoso esplendor do universo.











vasco gato