sábado, 26 de maio de 2012

E no final


















Morrer
depois de me despedir
das palavras, uma a uma.
E no final,
descontada a lágrima,
restar uma única certeza:
não há morte
que baste
para se deixar de viver.





Mia Couto










quinta-feira, 24 de maio de 2012

não te perdi a ti,


















Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de
linho e uma cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos,
utilizados, gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos.
Fizemos. E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e
por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma
cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,
( - o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um
apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.

Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a
sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.






Ingeborg Bachmann
















sábado, 12 de maio de 2012

Falta aqui tudo o que amámos juntos

































Que morte é a sombra deste retrato,
onde eu assisto ao dobrar dos dias,
órfão de ti e de uma aventura suspensa?

Tu não eras só este perfil.
Tu não eras só este sossego aconchegado
nas mãos como num regaço.
Tu não eras apenas
este horizonte de areia com árvores distantes.

Falta aqui tudo o que amámos juntos,
o teu sorriso com as ruas dentro,
o secreto rumor das tuas veias
abrindo sulcos de palavras fundas
no rosto da noite inesperada.
Falta sobretudo à roda dos teus olhos
a pura ressonância da alegria.

Lembro-me de uma noite em que ficámos nus
para embalar um beijo ou uma lágrima,
lutando, de cortadas, até romper o dia,
largo, intacto,
nas pálpebras molhadas dos lírios.

Tu não eras ainda este perfil
com uma rosa de cinza na mão direita.
Eu andava dentro de ti
como um pequeno rio de sol
dentro da semente,
porque nós – é preciso dizê-lo –
tínhamos nascido um dentro do outro
naquela noite.

Esse é o teu rosto verdadeiro;
aquele rosto que vou juntando ao teu retrato
como quando era pequeno:
recortando aqui,
colando ali,
até que uma fonte rasgue a tua boca
e a noite fique transbordante de água.





Eugénio de Andrade 















quinta-feira, 3 de maio de 2012

no entanto há portas que não posso atravessar






















A cidade é a mesma e no entanto
há portas que não posso atravessar
sítios que me seria doloroso outra vez visitar
onde mais viva que antes tenho medo de encontrar-te
Morreste mais que todos os meus mortos
pois esses arrumei-os festejei-os
enquanto a ti preciso de matar-te
dentro do coração continuamente
pois prossegues de pé sobre este solo
onde um por um perigo os meus fantasmas
e tu és o maior de todos eles
não suporto que nada haja mudado
que nem sequer o mais elementar dos rituais
pelo menos marcasse em tua vida o antes e o depois
forma rudimentar de morte e afinal morte
que por não teres morrido muito mais tenhas morrido






ruy belo











quarta-feira, 2 de maio de 2012

(o mais eram os gestos que não cabiam nas mãos)
















Pudesse eu morrer hoje como tu me morreste nessa noite – 
e deitar-me na terra; e não ouvir senão o rumor das ervas 
e o canto do vento nos ciprestes; e não ter medo das sombras, 
nem das aves negras nos meus braços de mármore, 
nem de te ter perdido – não ter medo de nada. Pudesse 

eu fechar os olhos neste instante e esquecer-me de tudo – 
das tuas mãos tão frias quando estendi as minhas nessa noite; 
de não teres dito a única palavra que me faria salvar-te, mesmo 
deixando que eu perguntasse tudo; de teres insultado a vida 
e chamado pela morte para me mostrares que o teu corpo 
já tinha desistido, que ias matar-te em mim e que era tarde 
para eu pensar em devolver-te os dias que roubara. Pudesse 

eu cair num sono gelado como o teu e deixar de sentir a dor, 
a dor incomparável de te ver acordado em tudo o que escrevi – 
porque foi pelo poema que me amaste, o poema foi sempre 
o que valeu a pena (o mais eram os gestos que não cabiam 
nas mãos); e pudesse eu deixar de escrever esta manhã

e pudesse eu morrer
mas ouço-te a respirar no meu poema. 






Maria Rosário Pedreira










vai à tua vida, que estarei contigo