quinta-feira, 15 de novembro de 2012

é noite e as noites custam, a mim custam
















(...)

Fica comigo. Daqui a nada é noite e as noites custam, a mim custam, sobretudo quando os candeeiros da rua se acendem e as árvores e os prédios fronteiros logo diferentes, quase ninguém na rua, um miúdo com um cão lá ao fundo, uma tristeza parada na tonalidade do silêncio, estes móveis e estes retratos que não me ligam nenhuma, os teus passos na escada, tu no passeio: nem vou à janela olhar, não quero olhar. Fica comigo só mais um bocadinho, dez minutos, meia hora, sei lá, o tempo inteiro. Mesmo que não fales. Mesmo que leias a revista do jornal. Mesmo que não me toques. Mesmo como se eu não existisse. Há alturas, imagina, em que penso que não existo e depois vem a aflição, o medo, o meu pulso tão rápido, a voz da minha mãe, do fundo da infância.

(...)







antónio lobo antunes













quarta-feira, 14 de novembro de 2012

o que te queria dizer talvez não fosse isto





















nem sequer telefonaste
tentava caminhar e tudo o que conseguia era bater
com a cabeça no lavatório tentava lembrar-me do meu nome
e só um rápido movimento de barbatanas sujas me aflorou a boca
esperei que viesses ao entardecer
abrisses os braços para mim
esperava que surgisses como um osso de luz reconhecível
mesmo durante a noite esperei
que me prendesses de novo para que não se enchesse o quarto
de peixes de enxofre devoradores de paredes
e tu nunca vieste
mais nada me poderia acontecer
teu rosto chegava-me à memória como mancha de fumo
longínqua nódoa de água e sangue
nos pulsos
uma mancha e tu não chegaste

desculpa
o que te queria dizer talvez não fosse isto
a solidão turva-se-me de lágrimas
e nas pálpebras tremem visões do meu delírio
olho as fotografias de antigos desertos
corpos coerentes que fomos
bocas de papel amarelecido
onde a sede nunca encontrou a sua água
e às vezes ainda tenho sede de ti






al berto










domingo, 11 de novembro de 2012

Gostava de falar em voz alta comigo mesmo, mas tenho medo.
















(...)

   Silêncios, silêncios de todos os géneros circulam no meu sangue.
Silêncios inexplicáveis, silêncios que vêm dalgum lado desconhecido
do meu corpo, do sul muito ao sul da memória. E as moscas voam
em volta do candeeiro, desesperadamente. O silêncio mais constrangedor
emana-se delas, do ruído surdo das asas cortando o ar.
    Ouço-me agora atentamente, as mãos cansadas sobre a mesa de trabalho.
    Não me ocorre qualquer palavra escrever. A noite acende-se pelas
paredes, abro a janela e um rumor de mar chega até mim.
    Os roncos dos petroleiros no porto, o zumbido laminar dum insecto. Apoio-me
ao parapeito e começo a esmigalhar as formigas que passam.
    Que horas serão no tremer inquieto do coração?
    Uma ave nocturna levantou voo, por entre as palmeiras, e noite tornou-se
mais escura. Incompreensível, distante desta janela.
    O silêncio abate-se também sobre o rosto. Sinto-o quente no lado de dentro da pele.
    Gostava de falar em voz alta comigo mesmo, mas tenho medo.

(…)







al berto