quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

E se tu não estiveres onde o poema está?














Tento empurrar-te de cima do poema
para não o estragar na emoção de ti:
olhos semi-cerrados, em precauções de tempo
a sonhá-lo de longe, todo livre sem ti.

Dele ausento os teus olhos, sorriso, boca, olhar:
tudo coisas de ti, mas coisas de partir...
E o meu alarme nasce: e se morreste aí,
no meio de chão sem texto que é ausente de ti?

E se já não respiras? Se eu não te vejo mais
por te querer empurrar, lírica de emoção?
E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá?
E se tu não estiveres onde o poema está?

Faço eroticamente respiração contigo:
primeiro um advérbio, depois um adjectivo,
depois um verso todo em emoção e juras.
E termino contigo em cima do poema,
presente indicativo, artigos às escuras.




Ana Luísa Amaral





ultimamente as imagens têm sido quase todas daqui


















segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

tu
















Como as rosas selvagens, que nascem
em qualquer canto, o amor também pode nascer
de onde menos esperamos. O seu campo
é infinito: alma e corpo. E, para além deles,
o mundo das sensações, onde se entra sem
bater à porta, como se esta porta estivesse sempre
aberta para quem quiser entrar.

Tu, que me ensinas o que é o
amor, colheste essas rosas selvagens: a sua
púrpura brilha no teu rosto. O seu perfume
corre-te pelo peito, derrama-se no estuário
do ventre, sobe até aos cabelos que se soltam
por entre a brisa dos murmúrios. Roubo aos teus
lábios as suas pétalas.

E se essas rosas não murcham, com
o tempo, é porque o amor as alimenta.




Nuno Judice







sábado, 26 de janeiro de 2013

Por isso não me procures














Se me comovesse o amor como me comove
a morte dos que amei, eu viveria feliz. Observo
as figueiras, a sombra dos muros, o jasmineiro
em que ficou gravada a tua mão, e deixo o dia

caminhar por entre veredas, caminhos perto do rio.
Se me comovessem os teus passos entre os outros,
os que se perdem nas ruas, os que abandonam
a casa e seguem o seu destino, eu saberia reconhecer

o sinal que ninguém encontra, o medo que ninguém
comove. Vejo-te regressar do deserto, atravessar
os templos, iluminar as varandas, chegar tarde.

Por isso não me procures, não me encontres,
não me deixes, não me conheças. Dá-me apenas
o pão, a palavra, as coisas possíveis. De longe.




Francisco José Viegas









sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada














Falei de ti com as palavras mais limpas
Viajei, sem que soubesses, no teu interior.
Fiz-me degrau para pisares, mesa para comeres,
tropeçavas em mim e eu era uma sombra
ali posta para não reparares em mim.

Andei pelas praças anunciando o teu nome,
chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada.
Em tudo o mais usei da parcimónia
a que me forçava aquele ardor exclusivo.

Hoje os versos são para entenderes.
Reparto contigo um óleo inesgotável
que trouxe escondido aceso na minha lâmpada
brilhando, sem que soubesses, por tudo o que fazias.






Fernando Assis Pacheco









quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

afogadas de silêncio


















Dizes que me amas de uma tal forma,
que não consigo deixar de corar;
que me amas de um modo primitivo,
sem razão aparente e sem desculpas
e que me amas porque me desejas,
porque sabes que eu também te amo
e como o monstro deste amor nos devora
a alma, a paciência e as maneiras.
É uma pena que todas estas coisas
morram em nós afogadas de silêncio.



Amalia Bautista










domingo, 20 de janeiro de 2013

não partas












Se partires, não me abraces – a falésia que se encosta
uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre
e sonha com viagens na pele salgada das ondas.


Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão
das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;
mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,
porque o ar que respiras junto de mim é como um vento
a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces –


o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno
nos dias sem ninguém – longe de ti, o corpo não faz
senão enumerar as próprias feridas (como a falésia conta
as embarcações perdidas nos gritos do mar); e o rosto
espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.
Se me abraçares, não partas.







Maria do Rosário Pedreira


















sábado, 19 de janeiro de 2013

Senta-te aqui, fala comigo














As palavras fazem
sentido (o tempo que levei até descobrir isto!),
um sentido justo,
feito de mais palavras.
(A impossibilidade de falar
e de ficar calado
não pode parar de falar,
escrevi eu ou outro).

Volto a casa.
ao princípio,
provavelmente um pouco mais velho.
As mesmas árvores,
mais velhas
a lembrança delas
passando sem tempo nos meus olhos,
como uma ideia feita ou um sentimento.

Entre o que regressa
e o que partiu um dia
ficaram palavras;

talvez (quem sabe?)
algum sentido.

Agora, como um intruso, subo as
escadas e abro a porta; e entro, vivo,
para fora de alguma coisa morta.

Senta-te aqui, fala comigo,
faz sentido
e totalidade à minha volta!





Manuel António Pina








sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

E adias esta urgência?














Porque 
não vens agora, que te quero 
E adias esta urgência? 
Prometes-me o futuro e eu desespero 
O futuro é o disfarce da impotência. 

Hoje, aqui, já, neste momento, 
Ou nunca mais. 
A sombra do alento é o desalento 
O desejo o limite dos mortais.






Miguel Torga










quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

pausa















Quando me cansei de mentir a mim próprio,
comecei a escrever um livro de poesia.

Foi há duas horas que decidi, mas foi há muito
mais tempo que comecei a cansar-me. O cansaço
é uma pele gradual como o outono. Pausa.

Pousa devagar sobre a carne, como as folhas
sobre a terra, e atravessa-a até aos ossos,
como as folhas atravessam a terra e tocam
os mortos e tornam-se férteis a seu lado.

A cidade continua nas ruas, as raparigas riem,
mas há um segredo que fermenta no silêncio.
São as palavras, livres, os livros por escrever,
aquilo que virá com as estações futuras.

Há sempre esperança no fundo das avenidas.
Mas há poças de água nos passeios. Há frio,
há cansaço, há duas horas que decidi, outono.

E o meu corpo não quer mentir, e aquilo que
não é o meu corpo, o tempo, sabe que
tenho muitos poemas para escrever.





José Luís Peixoto










terça-feira, 15 de janeiro de 2013

alguém me leve pela mão















Alguma coisa pensa em 
si própria em mim.
Em algum tempo ou em algum lugar
alguma coisa é real, pensando.

Às vezes quase lhe toco
quando não me perturbam os meus pensamentos.
E talvez quando faço
sem dar por isso os gestos de todos os dias
talvez então esteja muito perto sem o saber.

E alguém me leve pela mão por uma realidade
feita da minha vida e de coisas reais
a que pertencemos eu e o que pensa.




Manuel António Pina













segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

eu sou uma vida medonha e múltipla













Não preciso mas tu sabes como eu sou

Encaminho-me pouco divirto-me assim nas copas
Das árvores soprando pensamentos para o mundo que há de noite.
As pessoas quando acordam são outras, já sabias,
Essa névoa contemporânea do medo miudinho
Que perdemos nas cidades e nos corpos, tu entraste
Antes de mim nos jogos, o enxofre da música e o
Lago do feitiço, inocente homem breve que sonha
Tu bem sabes.
Depois aluguei a bruxa por uma vasta noite.
E a minha vida mudou, a noite cresceu,
A vertigem ardeu-me nos braços até a sangria
Do tédio quando para sempre julguei que te perdia.
Na luta perdi um ou dois braços,
Mais do que o que tinha. Mas esta memória é um palácio,
São corais no pensamento. Jardins e fantasmas,
O gume nas mãos sorvendo, criança estratosférica
E profunda: sem braços e agora sem mais nada.
Não me percebeste, enchi-me de fúria.
É uma arte, queria eu dizer, matar sem retrocesso e
Atraso – ah aqueles braços para apoiar as mãos ─ ,
Ceifando. Saturno e o vento na proa erguendo.
O navio no mar parado, parado: completamente.
Parado como dizer? Não dizer, eu sou uma vida
Medonha e múltipla. E agora descanso
Deitado nestas mãos que mexem
Sem apoio, sabes, nascendo dos teus olhos
P’la manhã.








rui costa











domingo, 13 de janeiro de 2013

diante de nós está o mundo















Amar é perder-se no tempo,
ser espelho entre espelhos.
Ao que é temporal chamar eterno...
Amar é despenhar-se
cair infindavelmente,
o nosso par
é o nosso abismo...
amar é duplo
e sempre dois
dois é querer continuar o mesmo
e já ser outro, e outra
amar é ter olhos nas pontas dos dedos
tocar no nó em que se enlaçam
quietude e movimento
Quero-te...
A tarde foi a pique
lâmpadas e reflectores
devassam a noite
com palavras de água, chama, ar e terra
inventamos o jardim dos olhares
diante de nós
está o mundo. 




Octávio Paz











sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

não tardará

















Guardarás numa caixinha
o que não fiz por ti,
a mão que não chegou à sobrancelha
que nem aflorou,
o beijo repetido nas palavras
sem que o tacto
o multiplicasse qual se desejava.

Nessa caixa de nada não tardará depois
a não estares só tu,
a não estar só eu,
a estarmos só os dois.






Pedro Tamen










quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

e eu amo-te














Gruas no cais descarregam mercadorias e eu amo-te.
Homens isolados caminham nas avenidas e eu amo-te.
Silêncios eléctricos faíscam dentro das máquinas e eu amo-te.
Destruição contra o caos, destruição contra o caos, e eu amo-te.
Reflexos de corpos desfiguram-se nas montras e eu amo-te.
Envelhecem anos no esquecimento dos armazéns e eu amo-te.
Toda a cidade se destina à noite e eu amo-te.





José Luís Peixoto






quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

you who made me laugh again

















I will remember your small room, the feel of you, the light in the window, your records, your books, our morning coffee, our noons, our nights, our bodies spilled together, sleeping, the tiny flowing currents, immediate and forever. Your leg, my leg, your arm, my arm, your smile and the warmth of you who made me laugh again.






Charles Bukowski





só costumo publicar em português, mas é tão lindo, tão lindo que não resisti e roubei à Vanessa












quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Dei-te o meu corpo como quem estende um mapa antes de viagem













Dei-te o meu corpo como quem estende
um mapa antes de viagem, para que nele
descobrisses ilhas e paraísos e aí pousasses
os dedos devagar, como fazem as aves
quando encontram o verão. Se me tivesses

tocado, ter-me-ia desmanchado nos teus braços
como uma escarpa pronta a desabar, ou
uma cidade do litoral a definhar nas ondas.

Mas, afinal, foste tu que desenhaste mapas
nas minhas mãos - tristes geografias,
labirintos de razões improváveis, tão curtas
linhas que a minha vida não teve tempo
senão para pressentir-se. Por isso, guardo

dos teus gestos apenas conjecturas, sombras,
muros e regressos - nem sequer feridas
ou ruínas. E, ainda assim, sem eu saber porquê,
as ondas ameaçam o lago dos meus olhos.





maria do rosário pedreira