quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A minha maneira de amar-te é simples:














A minha maneira de amar-te é simples:
aperto-te a mim
como se tivesse um pouco de justiça no coração
e ta pudesse dar com o corpo

Quando te revolvo os cabelos
algo de lindo nasce das minhas mãos

E não sei quase mais nada. Aspiro apenas
a estar contigo em paz e a estar em paz
com um dever desconhecido
que às vezes me pesa também no coração.







Antonio Gamoneda












domingo, 24 de fevereiro de 2013

Amo-te tanto, António

















Para sempre em azul

1. Já disse que estou cansada, farta desse argumento estúpido. Que me interessa a tua idade, os teus filhos, os teus oito netos e uma mulher que desde sempre te arrumou as camisas no lugar certo e te acompanhou na morte das tias, no casamento da Rita, no baptizado do João, te comprou a gravata a dar com o blazer. Estou-me nas tintas para esse caixote de fotografias, a aliança dobrada, o carro a meias, os juros acumulados na conta da reforma, o primeiro namoro, o único namoro, as noites de natal e os presentes sugeridos. Quero lá saber das amarras de trinta anos de um casamento igual ao de trinta milhões de outros, ou por acaso a tua magnífica ingenuidade te faz acreditar que és o único homem a quem acontece o fascínio da última viagem?

2. Já pensaste que amanhã nem sequer resistiremos ao pó, que outros irão em romarias de alguma disponibilidade devidamente apontada, depositar um magro ramo de flores numa qualquer cidade de mortos, e que nem na memória dos filhos ultrapassa-mos a linha da dor que o tempo amortece?

3. Já pensaste que ninguém recupera o brilho, o fulgor da pele, o fio do prazer, a sede do gesto, a alegria do coração a pular, a adolescência do amor?

4. Eu sei, já me disseste vezes sem conta que és o filho pródigo do teu medo, o operário forçado da tua solidão partilhada, o elo inquebrável de uma imensa cadeia dourada e alcatifada pelos compromissos sociais, o patriarca frágil de um sistema de reformas velhas de mil anos, o homem com um passado ligado à relva do seu pequeno jardim.


5. Mas também sei que me amas, que te revês na minha fuga ao tempo, que cresces no meu sonho onde o lugar do amor é só planícies e montanhas onde nenhuma casa nos espera, nenhum móvel para mudar, todos os silêncios podem ser sedução ou ponto final.

6. E depois quem te pode garantir que na manhã seguinte ainda estarei ao teu lado para te dar o cigarro e dizer que são horas da assembleia-geral, rir do teu pijama às riscas, irritar-me com a tua obsessão pela pasta de dentes meticulosamente espremida, dizer-te não te esqueças de telefonar à Zeca, e assistir ao teu nó de gravata bem comportado? E depois como terás a certeza da minha felicidade, eu tão jovem, tão acessível ao desejo, tão livre para escolher o restaurante, o perfume, o quadro, o sexo?

7. Confessa António que te assusta a impotência, o desejo encolhido ao canto das virilhas, escondido entre duas pregas rugosas, amor- talhado entre músculos flácidos, sem aquele arrojo juvenil de que tanto te orgulhaste aos vinte, trinta anos de pujança sexual.

8. Confessa que tens medo do espelho, que fazes a barba a correr para não te defrontares com as rugas, o cansaço, os lábios secos, as maçãs do rosto descaídas, os dentes postiços, o cabeço completamente branco, o tempo a rir-se de ti e com ele o olhar cínico e acusador da mulher que abandonaste por uma miragem.

9. Eu sei que já viste este filme e na altura até o achaste credível e elogiaste o realizador, o argumento, a representação, e na tua voz clara e pausada fizeste uma sinopse ao teu mais íntimo amigo, e ficaram os dois bebendo descafeínados, trocando opiniões muito analíticas, muito ilustradas por comentários tipo, pois é, a gente perde sempre o último combóio ou por medo ou subserviência ao que não é importante mas é funcional.

10. E foram cada um para as suas moradias voltadas para o mar da serenidade conformada, para a conta a prazo da velhice a dois, cinco, ao cão, à bicicleta no canto da garagem.

11. Eu sei que dois mais dois são quatro, que o mundo já era antes de mim, que a vida tem de ser gerida pelos polícias da normalidade, que tudo tem um preço, que o tempo tudo apaga, que há regras que valem e fazem o ouro, mas não quero saber. Aliás, ninguém quer saber de ninguém. É tudo mentira, António, tudo, nada resiste à claridade. Todos os contornos se desfazem contra a faca do irremediável e nenhum gume corta mais fundo que a vontade de ser, o terrível desejo de viver neste tempo enquanto os olhos vêem, o coração bate, a pele exige.

12. O resto, é o que virá depois de mim, depois de nós, depois das sombras se coserem às escarpas da memória, e essa é tão breve que nem com sílabas de aço se passa à eternidade.

13. Por isso insisto na autonomia de realizar o meu filme sem filtros especiais nem montagens em estúdios sofisticados. Construí o meu palco sobre o rio e todos os dias desaguo no vertiginoso estuário da coragem, doa a quem der, o último barco a passar há-de ser o meu, nem que tenha todos os dias, todos os instantes de dobrar o cabo da angústia, porque sabes António, ao leme deste querer, mais do que eu manda o desejo de gritar, de acontecer.

14. Quero lá saber do porta-chaves ou da máquina de lavar que já não lava, ou do imposto profissional, ou das férias em Itália, o teu fato precisa de ir para a lavandaria? e isso é importante? Amanhã é outra lua, deixa-me ler este artigo sobre moda, vai chover? eu vou comprar um disco de Jazz. Sim, é tão bom passear na praia, perder o pé na areia, encontrá-lo cheio de cascas de búzios, mergulhar nua, correr contra o vento, chegar a casa e encontrar-te. És tão bonito assim, azul, azul até ao infinito. Amo-te.

15. E é verdade, António, todos os filmes são possíveis. Isso, vamos sair, vamos ao cinema ver Bergman, melhor, vamos fazer amor... estava só a ver se te irritava, sabes como eu gosto de te acicatar, afinal, estamos tão velhos e gastos meu amor.

16. Como foi bom envelhecer contigo... Aconchegar a noite na concha das tuas costas, beijar nos teus dedos a renda da ternura. 

Amo-te tanto, António. Fica comigo neste quadro.





Isabel Mendes Ferreira


















Nada me pertenceu

















Nada me pertenceu - nem o vestido indecente
que pedi emprestado para te oferecer os seios, nem
os seios, que eram já teus muito antes do vestido.

O sorriso que devassou brevemente o meu rosto não
me pertenceu; porque ninguém o viu antes de ti,
nem o espelho se convenceu a devolver-mo.

Todas as coisas que a casa guardou quando partiste não
me pertenceram; porque, ao tocar-lhe nos dias mais
cinzentos, sinto que é pelo calor dos teus dedos que ainda
gritam; e mesmo a cama onde só teu corpo era bem-vindo
nunca chegou a ser inteiramente minha, pois, de contrário,
encontraria nela o meu lugar, e não o teu vazio.

Tu não me pertenceste - e, se uma vez acreditei que
acontecias dentro do meu corpo, das outras vi-te abraçar a
solidão com tanto ardor que concluí ser a memória quem
te mantinha vivo. O meu coração, contudo, sempre

te pertenceu - e a mão desesperada que o procura não
sente bater longe do teu peito. E mesmo os poemas todos
que escrevi não me pertenceram, porque essa vida
que pulsava no papel levaste-a tu contigo na hora
em que te foste - e a que tenho agora é mais
branca e vazia do que a morte, não é vida nem nada

que eu queira alguma vez que me pertença.






Maria do Rosário Pedreira


















quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

estou preso nos meus sentidos sem poder sair












Talvez sejas
a breve recordação de um sonho
de que alguém (talvez tu) acordou
(não o sonho, mas a recordação dele),
um sonho parado de que restam
apenas imagens desfeitas, pressentimentos.
Também eu não me lembro,
também eu estou preso nos meus sentidos
sem poder sair. Se pudesses ouvir,
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos,
animais acossados e perdidos
tacteando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim,
desamarraram-me de mim e agora
só me lembro pelo lado de fora.






Manuel António Pina














domingo, 17 de fevereiro de 2013

os teus caminhos estão em mim











persegue-me à toa. nunca
pares para pensar.

esquece as ruas. os teus
caminhos estão em
mim.

abre os olhos como o postigo
de um pequeno e delicado esconderijo, e
deixa o vento entrar.

recolhe o riso e fragrância terna
das flores na primavera. afasta
os lábios em pétalas vermelhas de
paixão. deixa-me roubar-te esse húmido pólen.

deixa que a sede se
sacie à tona dos teus olhos, onde
pretendo cegar.

desenlaço o corpo do teu e
demoro longo tempo a
perceber os meus contornos, assim
como a estátua demora a
esquecer a forma desfigurada
da pedra que lhe deu origem.

se te alheares, visito-te por
dentro de mim e juro
não acordar enquanto
não vieres pedir desculpa.

fico só, sabendo
que todos os objectos têm a
forma do teu corpo, e
todos os sons se reconduzem
à tua voz. não deambulo
pela casa – excessiva de ti – fujo-lhe
na ausência de movimento e
no desejo de ficar absolutamente
só. lembro-me de como não gostas
de me ver chorar.



valter hugo mãe






quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

esperar por ti é ter talvez esperança















esperar por ti não é esperar por ti
esperar por ti é ter talvez esperança
ou é esperar com minudenciosa paciência
e desenhar teu rosto em cada rosto que vejo surgir
na minha alvoroçada vizinhança dos teus passos
Ver-te é como ter à minha frente todo o tempo
é tudo serem para mim estradas largas
estradas onde passa o sol poente
é o tempo parar e eu próprio duvidar mas sem pensar
se o tempo existe existiu alguma vez
e nem mesmo meço a devastação do meu passado
Quando te vejo e embora exista o vento
nenhuma folha nas múltiplas árvores se move
ver-te é logo todas as coisas começarem é
tudo ser desde sempre anterior a tudo
Ver-te é sem tu me veres eu sentir-me visto
sentir no meu andar alguma segurança mínima
caminhar pelo ar a meio metro da terra
e tudo flutuar e ser ainda mais aéreo de que o ar
ver-te é nem mesmo pensar que deixarei de ver-te
ver-te é sentir pousar mais que um olhar
uma mão muito calma sobre a minha vida
ver o teu rosto é ter toda a certeza de que existo
que sempre existirei que não há mais ninguém
ver o teu rosto é mesmo mais do que nascer
empreender viagens começadas nesse rosto
donde podem sair inúmeros navios
ver o teu rosto é como tudo começar
corrida a minudenciosa prega do silêncio
silêncio alto como um cerro inesperado como um curro
aéreo como um cirro denso como um cerro
prosaico às vezes como a mecânica de um carro
Vejo-te e povoas só de folhas que depois desfolhas
os rasos descampados que te cercam por todos os lados
Caminho ao teu encontro
a juventude é como uma oportunidade
começa a ser outono a tarde é território para a luz
tem certas listas como um fato cinzento
toco-te apenas para ver se estás aí
um país se arredonda à tua volta
sinto todas as coisas no lugar
Quando te vais embora fico de repente ao abandono
sem ao menos a protecção de uns olhos de animal
da copa arredondada de uma árvore
Vais-te embora e deixa de haver árvores no mundo
e não tenho palavras e não tenho voz
não conheço ninguém nenhum ouvido
que se possa ajustar à forma do meu grito
E desço da liteira como quem desce da vida
como que me separo de mim mesmo
sinto-me inexplicável e na rua
para sempre irremediavelmente na rua


Ruy Belo























sábado, 2 de fevereiro de 2013

sentir que sobra uma porção de cama


















É tão triste acordar ao meio-dia
de um sábado que soa a vento e frio,
sentir que sobra uma porção de cama
(a cama se não estás é como um túmulo),
abrir os olhos ─ ou, melhor, que seja
a luz que vem abrir-mos ─ e saber
que tudo hoje será inútil, que
este dia nem um milagre o salva.

É triste levantar-se depois, sem jeito,
ir aos tropeções à casa de banho,
olhar-me, bocejar um par de vezes,
ver um homem sozinho no espelho,
um homem sozinho e que o sabe.

É triste que depois, contudo,
o meu corpo continue com o jogo,
e ponha a cafeteira, faça um sumo,
umas torradas e ponha tudo isso
numa mesa, que se sente, que coma
e beba e no mais negro do peito,
sem saber porquê, se lhe solte um pranto.

Torna-se então muito mais triste ainda
olhar pela janela, ver as nuvens
que passam, que ─ tal como a vida ─ passam
sem espaventos, mas que nos comovem,
apoiar-se, por fim, muito lentamente
às costas da cadeira e, isso mesmo,
deixar o olhar fixo e não ver nada.




juan miguel lópez











sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

o corpo, sem ti















É um fardo aos ombros
o corpo, sem ti.
Até o amarelo
dos girassóis se tornou cruel.
Não invento nada,
na arte de olhar
a luz é cúmplice da pele.






Eugénio de Andrade