quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

A noite trocou-me os sonhos



























A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal
                                                                             [em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu
                                                                              [dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.


António Ramos Rosa




















quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

a solidão

















A solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz.







José Saramago

















sábado, 7 de dezembro de 2013

Sou finalmente o único fantasma da minha vida inteira.


















Risquei o último fósforo
e estou agora vazia,
não esperando sequer
o deserto. Posso de novo
sublinhar os livros
sem pensar noutros olhos,
numa vontade que não coincida;
como quem se despe
de portas abertas, luzes acesas,
buracos na roupa,
indiferente ao desejo
de vizinhos e espelhos.

Sou finalmente o único fantasma
da minha vida inteira.







Inês Dias









quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

um poema no teu corpo















gostava de escrever um poema no teu corpo
mas não queria que parecesse uma tatuagem
se eu soubesse ler esse alfabeto da nudez
levantava um pouco a pele do teu ventre
e era ali que escondia algumas letras soltas

depois, quando tomasse banho contigo
poderia imaginar essas páginas molhadas
e folhear os teus livros de letras minhas
ou agarrar-me a ti por não saber nadar

e ler-te como o nome de um salva-vidas










josé luís almeida


























terça-feira, 3 de dezembro de 2013

o coração acontece-nos
















Aí estás tu à esquina das palavras de sempre
amor inventado numa indústria de lábios
que mordem o tempo sempre cá.
E o coração acontece-nos
como uma dádiva de folhas nupciais
nos nossos ombros de outono.
Caiam agora pálpebras que cerrem
o sacrifício que em nossos gestos há
de sermos diários por fora
Caiam agora que o amor chegou





Ruy Belo