sábado, 11 de janeiro de 2014

nunca saberemos



















Nunca saberemos se os enganados
são os sentidos ou os sentimentos,
se viaja o comboio ou a nossa vontade
se as cidades mudam de lugar
ou se todas as casas são a mesma.
Nunca saberemos se quem nos espera
é quem nos deve esperar, nem sequer
quem temos de aguardar no meio
de um cais frio. Não sabemos nada.
Avançamos às cegas e duvidamos
se isto que se parece com a alegria
é só o sinal definitivo
de que nos voltámos a enganar.





Amalia Bautista














domingo, 5 de janeiro de 2014

Não tenho planos
















Não tenho planos, nem promessas, nem
filhos que nos convidem para almoços
de domingo - a minha ideia de família
resume-se a um retrato velho preso numa
gaveta; e do amor possível sei tão-só

o que li nos romances que me salvaram
da desordem quando o meu tempo
andava de ferida em cicatriz. Mas guardo
ainda muitos por estrear para essa estante

que ergueste no corredor como uma casa
nova. E trago as portas abertas no coração:

se ainda não sabias, és muito bem-vindo.









Maria do Rosário Pedreira















sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Podemos sempre escrever na cabeça. Ou no corpo.

























Cama

Em resumo, sem pensar muito, em dois por dois, numa cama já com mais de dez anos, podemos fazer amor, podemos dormir, ler, ver televisão, falar ao telemóvel.

Isto diz ele. E ela concorda.

Ele acrescenta

Não podemos tomar banho.

Ela fica calada e vê-se na cama a ser tratada, banho assistido, o corpo sem movimento. Fecha os olhos e concentra-se em mais um episódio medonho de alguém que mata outro alguém.
Numa cama também se mata.
Também se morre.
No fim da noite, escreverá. Na cama. Como sempre fez.
Existem aquelas fotografias, era muito pequena, imagens a preto e branco, ela na cama com uma almofada, um caderno e um lápis.
Lembra-se da frase da Nobel da Paz e depois pensa que não teve um bom professor e que não irá mudar o mundo.
As coisas que lhe passam pela cabeça começam a ser estranhas pelas seis da tarde, quando chega às onze da noite é outra pessoa. Ninguém dá por isso.
Ainda bem.
Por isso, escreve, sozinha na cama. No quarto ao lado, o filho escreve sozinho na cama. Algures no mundo, alguém escreve, sozinho, na cama. Mesmo que não tenha um papel ou computador.
Podemos sempre escrever na cabeça. Ou no corpo.
Ela tatuou a palavra frágil. Num sítio visível, evidente, inesperado para uma pessoa como é, ou como os outros pensam que é. Paciência. Só depois da palavra tatuada é que percebeu que dentro de frágil está a palavra ágil.

Coisas destas são comuns nela. Mas ninguém sabe ou quem sabe não irá contar ao mundo e o mundo pode continuar na rota de colisão com a sua imagem ao avesso.



Patrícia Reis