sexta-feira, 28 de novembro de 2014

porra



























Porra porra porra porra porra, dizia ele no interior de si mesmo, porque não achava dentro de mim outras palavras que não fossem essas, espécie de débil protesto contra a tristeza cerrada que me enchia. Sentia-me muito indefeso e muito só e sem vontade, agora, de chamar por ninguém porque (sabia-o) há travessias que só se podem efectuar sozinho, sem ajudas, ainda que correndo riscos de ir a pique numa dessas madrugadas de insónia que nos tornam Pedro e Inês em cripta de Alcobaça, jacentes de pedra até ao fim do mundo.










antónio lobo antunes















sexta-feira, 14 de novembro de 2014

a dor de todas as ruas vazias


















deus tem que ser substituído rapidamente por poe-
mas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e limpos.

a dor de todas as ruas vazias.

sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste
silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abis-
mo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de aca-
bar comigo mesmo.

a dor de todas as ruas vazias.

mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do
deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e
dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu cora-
ção, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.

a dor de todas as ruas vazias.

pois bem, mário - o paraíso sabe-se que chega a lis-
boa na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no
cimo do mastro, e mandar arrear o velame.

é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem
cadastro.

a dor de todas as ruas vazias.

sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o
filme acabou. não nos conheceremos nunca.

a dor de todas as ruas vazias.

os poemas adormeceram no desassossego da idade.
fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais
curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas. ..e
nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida - e
a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.

a dor de todas as ruas vazias.







Al-Berto















quinta-feira, 13 de novembro de 2014

sem garantia







































procura-me por todos os lados, 
procura-me às escuras por todos os lados, estarei
algures, fremindo, criando bichos entre
os braços e as pernas, aguardando que
me salves. só assim te amarei, se souberes
descortinar o caminho para o lugar onde
me escondo, com medo, com fantasmas,
feito para ser amado apenas por quem,
avistando-me no fundo do poço, me
puder querer sem garantia de outra condição.





Valter Hugo Mãe














segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Em vez disso























Parecia-me que este dia
sem ti
devia ser inquieto,
escuro. Em vez disso está repleto
de uma estranha doçura, que aumenta
com o passar das horas –
quase como a terra
após um aguaceiro,
que fica sozinha no silêncio a beber
a água caída
e pouco a pouco
nas veias mais profundas se sente
penetrada.
A alegria que ontem foi angústia,
tempestade –
regressa agora em rápidas
golfadas ao coração,
como um mar amansado:
à luz suave do sol reaparecido brilham,
inocentes dádivas,
as conchas que a onda
deixou sobre a praia.



Inês Dias

daqui













sexta-feira, 7 de novembro de 2014

falo contigo ou pelo menos tento























Com palavras usadas
gastas pelo tempo e o hábito,
cujo último alento já se diluiu.
Com palavras, como sonhos, queimadas pela vida,
nesta noite chuvosa, falo contigo
ou pelo menos tento, ligeiramente ébrio,
extraíndo cada sílaba do país do nunca jamais.
E sentindo essa repentina lucidez
com a qual, de imediato, rompemos a rotina de ser e
conhecer-nos,
sentindo, digo, essa rara sensação distante e exangue
do whisky, da noite e do silêncio;
do ardente desespero com que aceitamos a derrota,
dessa vertigem, às vezes -só às vezes -tua e minha,
na qual morremos sorrindo de olhos abertos.
Sentindo o pouco que é um beijo ao fundo da tua língua
ou os teus olhos espraiados nos meus,
ou as nossas mãos unidas no ar,
percorrendo um museu de assumidos fracassos.
Desfilam, batalhão desolado de fantasmas,
nomes e nomes de tão distintos ecos.
Pretendemos, com abolidos rostos, datas caducadas
e cidades inatingíveis, responder a uma velha questão
cuja resposta só a morte já conhece.
Anos e anos, voluntários exílios de seres e países,
os filhos que não quis ter, os que tu sim tiveste,
o tremor do desejo que ainda guardas na tua pele,
o meu eterno navegar de cama em cama,
reunem-se e afirmam o seu destino
frente à cerimónia do amanhecer.







Juan Luis Panero