"é claro que sei dizer palavras calmas e amar devagar os que chegam a meu lado e recordam o meu nome de todas as maneiras com que ao redor da vida o foram construindo
é claro que sei inventar cantigas breves das que à meia-noite perdem as notas mais vibrantes quando fogem precipitadamente dos nossos bolsos
é claro que sei voltar a casa e abrir a porta e fingir que tudo está perfeito sobre a mesa e os objectos guardam os lugares de sempre e eu continuo na moldura com um riso de quinze anos tropeçando no teu ar sério quase a sair do retrato
é claro que sei passar os dedos devagar pelo teu corpo nas noites em que chegas e dizes já não chove como se colocasses no meu colo uma prenda de natal e pudesses apagar a tempestade no brevíssimo instante em que a vida se resume aos nossos olhos tentando acreditar que é cedo
é claro que sei esperar por ti sabendo desde sempre que não vens e mesmo assim escolho sem sobressalto a música perfeita de te acolher no sono com o enevoado rumor de todos os encontros improváveis
é claro que sei as palavras mesmo que as não diga que misturas ao longe com os afiados gumes com que tentas a custo perdoar-te as horas roubadas a todos os seus legítimos donos
é claro que sei fechar as janelas às armadilhas que as noites constroem dentro dos teus medos e donde não consegues regressar e com sorte encontrar numa cómoda qualquer coisa tua que esqueceste na pressa da saída e pensar que foi por mim que ela apareceu em tão estranho lugar
- mas quando entre os ruídos da noite a tua ausência é a única divisão da casa que razoavelmente partilhamos tudo isso serve desculpa de muito pouco"
"é claro que sei dizer palavras calmas
ResponderEliminare amar devagar os que chegam a meu lado
e recordam o meu nome de todas as maneiras
com que ao redor da vida o foram construindo
é claro que sei inventar cantigas breves
das que à meia-noite perdem as notas mais vibrantes
quando fogem precipitadamente dos nossos bolsos
é claro que sei voltar a casa e abrir a porta
e fingir que tudo está perfeito sobre a mesa
e os objectos guardam os lugares de sempre
e eu continuo na moldura com um riso de quinze anos
tropeçando no teu ar sério quase a sair do retrato
é claro que sei passar os dedos devagar pelo teu corpo
nas noites em que chegas e dizes já não chove
como se colocasses no meu colo uma prenda de natal
e pudesses apagar a tempestade
no brevíssimo instante em que a vida se resume
aos nossos olhos tentando
acreditar que é cedo
é claro que sei esperar por ti
sabendo desde sempre que não vens e mesmo assim
escolho sem sobressalto a música perfeita
de te acolher no sono com o enevoado rumor
de todos os encontros improváveis
é claro que sei as palavras mesmo que as não diga
que misturas ao longe com os afiados gumes
com que tentas a custo perdoar-te
as horas roubadas a todos os seus legítimos donos
é claro que sei fechar as janelas às armadilhas
que as noites constroem dentro dos teus medos
e donde não consegues regressar
e com sorte encontrar numa cómoda
qualquer coisa tua que esqueceste
na pressa da saída e pensar
que foi por mim que ela apareceu
em tão estranho lugar
- mas quando entre os ruídos da noite
a tua ausência é a única divisão da casa
que razoavelmente partilhamos
tudo isso serve desculpa de muito pouco"
Alice Vieira