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caminhei toda a noite para semear a tua recordação
Duas horas da manhã. Os ratos procuram nos caixotes os
restos do dia morto: a cidade pertence aos fantasmas, aos assassinos, aos
sonâmbulos. Onde estás tu, em que leito, em que sonho? Se te encontrasse, tu
passarias sem me ver pois não somos vistos pelos nossos sonhos. Não tenho fome:
esta noite não consigo digerir a minha vida. Estou cansada: caminhei toda a
noite para semear a tua recordação. Não tenho sono: nem sequer tenho apetite da
morte. Sentada num banco, embrutecida apesar de tudo pela aproximação da manhã,
deixo de me lembrar que te procuro esquecer. Fecho os olhos... os ladrões não
querem senão os nossos anéis, os amantes a carne, os pregadores as nossas
almas, os assassinos a vida. Podem tirar-me a minha: desafio-os a nada lhe
mudar. Inclino a cabeça para ouvir por cima de mim o remexer das folhas...
Estou num bosque, num campo... É a hora em que o Tempo se disfarça de varredor
e Deus talvez em trapeiro. Ele avarento, ele teimoso, ele que não consente que
se perca uma pérola nos montes de cascas de ostras às portas das tabernas. Pai
nosso que estais no céu... Verei alguma vez vir sentar-se a meu lado um velho
de sobretudo castanho, com os pés enlameados por ter tido, para me alcançar, de
atravessar sabe Deus que rio? Ele deixar-se-ia cair no banco, tendo na mão
fechada um presente muito precioso que seria o bastante para tudo mudar.
Abriria os dedos lentamente, um após outro, muito prudentemente, por que aquilo
foge... Que seguraria ele? Uma ave, um germe, uma faca, uma chave para abrir a
lata de conserva do coração?
marguerite yourcenar
sublime.
ResponderEliminarcomo a marguerite yourcenar, sublime
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