terça-feira, 28 de setembro de 2010

bastava-me uma voz que me chamasse









































Mãe, eu quero ir-me embora — a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram —
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

Mãe, eu quero ir-me embora — os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim — tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

Mãe, eu quero ir-me embora — nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique —
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito
como uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

Mãe, eu vou-me embora — esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua — a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.









maria do rosário pedreira

o canto do vento nos ciprestes





















9 comentários:

  1. ainda bem, valeu a pena trazer a tua imagem.
    eu também gosto muito.

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  2. Gosto muito desta poeta, tenho que dedicar-me à leitura dos seus poemas. Neste, há um eco do Eugénio de Andrade, bem feito, é como entrar num lugar e ter uma leve sensação de já ali haver estado...

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  3. Pergunto-me às vezes o que nos faz gostar desta ou daquela poesia ou texto ou livro, e, agora neste seu comentário encontro a resposta, é que às vezes ao ler 'é como entrar num lugar e ter uma leve sensação de já ali haver estado... ', de alguma forma, uma identificação. Obrigada

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  4. Só nos toca e só compreendemos verdadeiramente aquilo que já vivemos. Não há outra forma, apenas viver. E viver é maravilhoso.
    um abraço,

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  5. Belíssimo. Triste. Profundamente triste.
    Este poema ficou-me colado à pele.
    Beijos
    Paula

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  6. é verdade, é belo, triste, são vidas, Paula, estilhaços das nossas, às vezes.
    beijo
    paula

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