quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Tocas um corpo























Tocas um corpo, sentes-lhe o repetido tremor sob os teus dedos, o cálido andamento do sangue. Observas-lhe o lânguido amolecimento, as suas sombras corporais, o seu desvelado esplendor.

Não há palavras.

Tocas um corpo; um mundo enche agora as tuas mãos, empurra o seu destino. Estira-se o tempo nos pulmões silva como um chicote rente aos lábios. As horas, o instante, detêm-se, extrais aí a tua pequena parcela de eternidade. Antes foram os nomes e as datas. A história tão clara e lúcida de dois rostos distantes. Depois aquilo a que chamas amor, talvez se transforme em promessa arrancada, muro erguido que pretende encerrar aquilo que só em liberdade pode ganhar-se.
Não importa, agora nada importa.
Tocas um corpo, nele te fundes, apalpas a vida, real, comum.
Já não estás só.







Juan Luis Panero


















domingo, 16 de fevereiro de 2014

Agora que regressei a este quarto para ficar

















Agora que regressei
a este quarto para ficar,
não me contes que a vida
continua lá fora,
não me tragas
a luz de outros voos.

Basta-me a sombra dos ramos
fingindo árvores nas cortinas;
tal como a ti
a águia libertada à porta
da mais indolente taberna ou
os cães recusando-se a morrer
de traição - todos esses perdões
em papel que vais guardando.

Ao centro do jardim (lembras-te?)
havia um poço
onde deitavam as laranjas
caídas ao chão
para se desfazerem
num silêncio mais doce.

Deixa-me ser também
apenas o caroço deste mundo,
que apodrece à nossa volta

e na minha carne.






inês dias 

































quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Não me pareço com nada
















Agora não há razão que me acorrente
à terra. Bebo a manhã por um copo sujo,
acreditando talvez que ninguém envelhece
em vão, que todas as batalhas me hão-de servir
no futuro. Mas dentro de mim eu sei que quero
desperdiçar-me, gastar-me nos gumes, nos arcos
que me fundam. Não me pareço com nada,
não me reconheço em lugar nenhum da casa.





Rui Pires Cabral


















sábado, 8 de fevereiro de 2014

se




















se eu fosse louco não era um tonto parvo, que fico imóvel perante uma adversidade. se eu fosse louco esquecia que há gente e sociedade e convenções e essas tretas todas e saía já deste emprego estúpido e ia ter contigo. e não me importava nada com quem visse ou estivesse ou comentasse. punha-me a caminho e quando aí chegasse olhava-te, sorria, pousava uma mão em cada uma das tuas faces e beijava-te e beijava-te e beijava-te e o tempo parava e deixava de contar. e sendo louco queria estar despido de tudo o que queria deixar para trás quando te fosse beijar, chegar a ti como um animal, irracional mas puro. se não fosse apenas tonto tirava mesmo a roupa, o casaco logo à entrada, a camisa a subir as escadas, virava à esquerda, desapertava o cinto, livrava-me das calças, virava à direita, tirava o resto e quando chegasse a ti para te beijar estava nu. depois não existia mais nada, apenas nós os dois, e eu só queria saber do teu sabor, da tua boca molhada, desses lábios que queria mordiscar, da tua língua na minha, das palavras que não precisávamos de dizer e desses nossos beijos de mo ra dos em que sabíamos haver um todo maior que as partes, que num beijo assim se salva o mundo, que entre duas bocas há um abismo mas também um evereste e que não éramos loucos, loucos seríamos se não o fizéssemos.







josé luis almeida