domingo, 31 de julho de 2011

nunca descobrimos o que fazer com o amor






















Sabemos vender sorrisos e mãos
corpos vazios ou completos às sedes redondas e ferozes
sabemos vender a língua que nos adeja pela pele
sabemos vender tudo que por dentro se move e até
o que se gastou entre segundos de um tempo infinito
mas nunca descobrimos o que fazer com o amor
que a brasa do anos de embalo não consome.



Sofia Loureiro dos Santos 




































terça-feira, 26 de julho de 2011

poderei também eu partir





























Este foi o nosso último abraço. E quando,
daqui a nada, deixares o chão desta casa
encostarei amorosamente os lábios ao teu copo
para sentir o sabor desse beijo que hoje não
daremos. E então, sim, poderei também eu
partir, sabendo que, afinal, o que tive da vida
foi mais, muito mais, do que mereci.









Maria do Rosário Pedreira






















quinta-feira, 21 de julho de 2011

é tão fácil























é tão fácil amar lugares
que não existem


recordar praças e pontes e travessas
onde nunca morremos por ninguém


quartos na penumbra de estores corridos
sobre a sonolência dos gatos em agosto
onde nunca chegámos atrasados


o tampo de mármore de mesas de café
onde as nossas mãos não se esconderam
por alguém ter entrado antes de nós


é tão fácil lembrar nomes e rostos e destinos
e colocá-los em nossos ombros e festejar com eles
as luminosas horas em que a vida
nos rodeava a cintura como um amante possessivo
e nós repetíamos o nome das cidades
onde nada disso tinha acontecido


é tão fácil assim
dizer adeus
sabendo que deus nem sequer assiste
à despedida






Alice Vieira








domingo, 17 de julho de 2011

Eu tive a dita de me terem roubado tudo






















Que vens contar-me
se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe
antigamente ou lá para o futuro.
É bem certo que existo:
chegou-me a vez de escutar.

Que queres que te diga
se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.
Aprendo a não saber:
que a ciência aprenda comigo
já que não soube ensinar.

O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas
e não desce á cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma
antes de desaparecer.

Para que queres que te apareça
se me agrada não ter horas a toda a hora?
A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.

Para que me lastimas
se este é o meu auge?!
Eu tive a dita de me terem roubado tudo
menos a minha torre de marfim.
Jamais os invasores levaram consigo as nossas torres de marfim.

Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que faça da porta da torre
que dá para donde vim.










Almada Negreiros










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domingo, 10 de julho de 2011

Quiero que sepas una cosa






















Si tu me olvidas

Quiero que sepas
una cosa.

Tú sabes cómo es esto:
si miro
la luna de cristal, la rama roja
del lento otoño en mi ventana,
si toco
junto al fuego
la impalpable ceniza
o el arrugado cuerpo de la leña,

todo me lleva a ti,
como si todo lo que existe,
aromas, luz, metales,
fueran pequeños barcos que navegan
hacia las islas tuyas que me aguardan.

Ahora bien,
si poco a poco dejas de quererme
dejaré de quererte poco a poco.

Si de pronto
me olvidas
no me busques,
que ya te habré olvidado.

Si consideras largo y loco
el viento de banderas
que pasa por mi vida
y te decides
a dejarme a la orilla
del corazón en que tengo raíces,
piensa
que en ese día,
a esa hora
levantaré los brazos
y saldrán mis raíces
a buscar otra tierra.

Pero
si cada día,
cada hora
sientes que a mí estás destinada
con dulzura implacable.
Si cada día sube
una flor a tus labios a buscarme,
ay amor mío, ay mía,
en mí todo ese fuego se repite,
en mí nada se apaga ni se olvida,
mi amor se nutre de tu amor, amada,
y mientras vivas estará en tus brazos
sin salir de los míos.




Pablo Neruda




















terça-feira, 5 de julho de 2011

um simples bater de chuva nos vidros


































As coisas mais simples, ouço-as no intervalo
do vento, quando um simples bater de chuva nos
vidros rompe o silêncio da noite, e o seu ritmo
se sobrepõe ao das palavras. Por vezes, é uma 
voz cansada, que repete incansavelmente
o que a noite ensina a quem a vive; de outras
vezes, corre, apressada, atropelando sentidos
e frases como se quisesse chegar ao fim,
mais depressa do que a madrugada. São coisas simples
como a areia que se apanha, e escorre por
entre os dedos enquanto os olhos procuram
uma linha nítida no horizonte; ou são as
coisas que subitamente lembramos, quando
o sol emerge num breve rasgão de nuvem.
Estas são as coisas que passam, quando o vento
fica; e são elas que tentamos lembrar, como
se as tivéssemos ouvido, e o ruído da chuva nos
vidros não tivesse apagado a sua voz.





Nuno Júdice
















é um corpo



















estão aqui 37 graus. é um corpo. e ninguém se aproxima. senão para recuar. devorar. ou ficar.





vasco gato
















domingo, 3 de julho de 2011

Que tristeza tão inútil






























Que tristeza tão inútil essas mãos
que nem sempre são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono.

Pela noite adiante, 
com a morte na algibeira,
cada homem procura um rio para dormir,
e com os pés na lua ou num grão de areia
enrola-se no sono que lhe quer fugir.

Cada sonho morre às mãos doutro sonho.
Dez-réis de amor foram gastos a esperar.
O céu que nos promete um anjo bêbado
é um colchão sujo num quinto andar.






Eugénio de Andrade
















sexta-feira, 1 de julho de 2011

dormir ao relento entre as tuas mãos






































Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões. 
Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo 
Se se recorda dos movimentos migratórios 
E das estações. 
Mas não me importo de adoecer no teu colo 
De dormir ao relento entre as tuas mãos. 








Daniel Faria








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