quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Entrego-te as palavras


















Entrego-te as palavras mais brandas
que entre os meus dedos construí
para alimentar de ti os recantos da casa
invadindo o coração da noite

Entrego-te as palavras com a redonda luz
das maçãs sobre a mesa e o rumor da água
rasgando o caminho da paixão
em horas que já não conseguimos sem ajuda
recordar
mas que habitam a mais frágil memória de nós próprios

Palavras jorrando dos meus olhos
invadindo-te o sono e tropeçando
nas esquinas das frases que decoro
ao longo dos veios da tua pele

E a verdade é que nunca terei outra história
para além da que nos aconteceu
e que ficamos à espera de um dia perceber melhor
porque nunca ninguém se prepara convenientemente
para a chegada do amor
e ele é sempre um convidado estranho
sentado em silêncio na penumbra da sala
olhando os quadros, o chão, o tecto

Como um velho parente da província
com medo de dizer o que não deve






Alice Vieira


















terça-feira, 30 de agosto de 2011

Vais crescendo, meu filho























Vais crescendo, meu filho, com a difícil luz do mundo. Não foi um paraíso, que não é medida humana, o que para ti sonhei. Só quis que a terra fosse limpa, nela pudesses respirar desperto e aprender que todo homem, todo, tem direito a sê-lo inteiramente até ao fim. Terra de sol maduro, redonda terra de cavalos e maçãs, terra generosa, agora atormentada no próprio coração; terra onde teu pai e tua mãe amaram para que fosses o pulsar da vida, tornada inferno vivo onde nos vão encurralando o medo, a ambição, a estupidez, se não for demência apenas a razão; terra inocente, terra atraiçoada, em que nem sequer é já possível pousar num rio os olhos de alegria, e partilhar o pão, ou a palavra; terra onde o ódio a tanta e tão vil besta fardada é tudo o que nos resta; abutres e chacais que do saber fizeram comércio tão contrário à natureza que só crimes e crimes e crimes pariam.

Que faremos nós, filho, para que a vida seja mais que a cegueira e cobardia?





Eugénio de Andrade






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domingo, 28 de agosto de 2011

Julgava que te tinha dito adeus
























Julgava que te tinha dito adeus,
um adeus contundente, ao deitar-me,
quando pude por fim fechar os olhos,
esquecer-me de ti, dessas argúcias,
dessa tua insistência, teu mau génio,
tua capacidade de anular-me.
Julgava que te tinha dito adeus
de todo e para sempre, mas acordo,
encontro-te de novo junto a mim,
dentro de mim, rodeias-me, a meu lado,
invades-me, afogas-me, diante
dos meus olhos, em frente à minha vida,
por sob a minha sombra, nas entranhas,
em cada golpe do meu sangue, entras
por meu nariz quando respiro, vês
pelas minhas pupilas, lanças fogo
nas palavras que minha boca diz.
E agora que faço?, como posso
desterrar-te de mim ou adaptar-me
a conviver contigo? Principie-se
por demonstrar maneiras impecáveis.
Bom dia, tristeza.







Amalia Bautista












pensar em ti




















Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.
Um pesar grãos de nada em mínima balança,
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.


Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir.


Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas com o pensar te pudesses partir.






António Gedeão








sexta-feira, 26 de agosto de 2011

na tua pele

























Leio o amor no livro
da tua pele;
demoro-me em cada
sílaba, no sulco macio
das vogais, num breve obstáculo
de consoantes, em que os meus dedos
penetram, até chegarem
ao fundo dos sentidos. Desfolho
as páginas que o teu desejo me abre,
ouvindo o murmúrio de um roçar
de palavras que se
juntam, como corpos, no abraço
de cada frase. E chego ao fim
para voltar ao princípio, decorando
o que já sei, e é sempre novo
quando o leio na tua pele.






Nuno Júdice










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quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Que fácil é a ausência!
























O dia




Amanheceu sem ela.
Mal se move.
Recorda.

(Meus olhos, mais estreitos,
sonham-na).

Que fácil é a ausência!

Nas folhas do tempo
essa gota do dia
resvala, treme. 











Jaime Sabines

(tradução de Vasco Graça Moura) 















quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Ficarei só com o meu dilúvio.























Que os teus dedos me perdoem as palavras.
Que os teus olhos me perdoem o silêncio.
A fuga não é um acto premeditado.
No mergulho não existe oxigénio suficiente.
Unicamente uma desordem de músculos
que sustentam a ansiedade.
Ficarei só com o meu dilúvio.




in «Vem Adormecer o Dia» de «Francisco»












A kiss could've killed me

If it were not for the rain
A kiss could've killed me
Baby if it were not for the rain

And I had a feeling it was coming on
I felt it coming
For so long.
If I'm to be the fool
Then so it be.

This fool can die now
With a heart that's soaked
How
How had it it coming
For so long.

And darling take my hand
And lead me through the door
Let's kidnap each other
And start singing our song

My heart is charged now
Oh, it's dancing in my chest
And I fly when I walk now
From the spell in that kiss.

Cause I...

It could've
It could've killed me 
If not for the rain.

Oh darling let me dream
Cause somewhere inside me
I have been waiting
So patiently
For you.

So don't you cry.
Don't break my dream. 

Let the rain exalt us
As the night draws in.
Winds howl around us
As we begin.
What a way to start a fire
Broken with the break of day

A kiss could have killed me
If it were not for rain.

I have a feeling it's coming on.
I felt it coming on
for so long.

And it could've
It could've killed me. 
If it were not for the rain.





















terça-feira, 23 de agosto de 2011

«Não te esqueças de mim.»
























Se eu como ele, o meu amor
tão anterior assim ao próprio amor,
o cajado e a pele por simbólica mão,
e o perfume que em mim,
então,

talvez eu te fizesse
sentir sem que o soubesse,
ao certo,
o chamamento à noite, falar
muito de noite e nela adormecer.
Longuíssima e final. Mas nova sempre.
Reencarnando os tempos e as datas.

De memórias tão curtas. E do fim
mais final do esquecimento.
Ter encontrado há pouco coisa dada
há quantos anos? Trinta?
«Não te esqueças de mim.»





ana luísa amaral























segunda-feira, 22 de agosto de 2011

sem aviso


















Acordo com o teu nome nos 
meus lábios — amargo beijo 


esse que o tempo dá sem 
aviso a quem não esquece. 









Maria do Rosário Pedreira 












domingo, 21 de agosto de 2011

chegaste



















chegaste donde o medo tecia os meus cabelos
donde os pássaros ardiam a voz
donde só o silêncio se desconhecia
era tão larga a morte
que não se podia ver dos meus olhos

chegaste quando o fim sangrava dos meus braços
a casa soterrou-me dos teus passos
terra de mim todo
chegaste pelo coração de água da noite
quando o mistério escorre em grito pelos telhados
e Deus se desabita

chegaste tão de dentro de mim mesmo
que agora que a morte me nasce na garganta
a noite e o meu rosto são alguém
que eu próprio desconheço







Pedro Sena-Lino


















sexta-feira, 19 de agosto de 2011

...se é verdade...






















Se for possível, manda-me dizer:

- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.




Hilda Hilst








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Amo os teus defeitos, e tantos eram




















Amo os teus defeitos, e tantos 
eram, as tuas faltas para comigo 
e as minhas; essa ênfase 
de rechaçar por timidez; solidão 
de fazer trepadeiras, agasalhos 
para velhos, depois para netos; 
indulgência de plantar e ver 
o crescimento da oliveira do paraíso, 
carregada de flores persistentemente 
caducas; essa autoridade, irremediável 
desafio; e a astúcia 
de termos ambos quase a mesma cara. 







António Osório