Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
* * *
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
Alexandre O'Neill
E embora tropece de ternura por ti não dei nada da tua pele, nem o cheiro, nem o sabor, nem o tacto. Mas este é um dos poemas que mais gosto, e por isso gostaria de te o oferecer, aceita-o como se fosse meu (quem dera) :)
ResponderEliminarVasco (teu)
"Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousando em suor nocturno.
Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.
Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.
Conheço o sal que resta em minha mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.
Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.
A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados."
Jorge de Sena
lindo! 'conheço o sal da tua pele seca depois que o estio se volveu inverno', comecei a entender a poesia transformando-a em prosa e só depois comecei a gostar de alguma, pouca.
ResponderEliminarnão sou muito de poetas, apesar do que parece.
dorme bem vasco, aguenta os turnos, não deve ser fácil.
É hábiot, são bastantes anos... mas muito menos do que os que sou apaixonado por poesia, por prosa também, por musica. Sou de poesia, sou de prosas, sou de conversas, sou de silêncios, sou de toques, de ternuras... a mim sabem-me bem as tuas palavras antes de me deitar.. são o teu retrato... vamos ao paraíso (o que quer que isso seja)?
ResponderEliminarVasco (teu)
"Cansado de ser homem durante o dia inteiro
chego à noite com os olhos rasos de água.
Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,
entrar dentro de ti como num bosque.
É a hora de fazer milagres:
posso ressuscitar os mortos e trazê-los
a este quarto branco e despovoado,
onde entro sempre pela primeira vez,
para falarmos das grandes searas de trigo
afogadas a luz do amanhecer.
Posso prometer uma viagem ao paraíso
a quem se estender ao pé de mim,
ou deixar uma lágrima nos meus olhos
ser toda a nostalgia das areias."
Eugénio de Andrade
por aqui sou eu que mando: 'dormir meninos!'
ResponderEliminare dormir pode ser paraíso, pode ser inferno. há dias, ha noites.
gosto que gostes das palavras sendo retratos