quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.















Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. 
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos 
e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor. 

E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. 
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. 
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. 

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. 
A tomar café correndo porque está atrasado. 
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem. 
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar. 
A sair do trabalho porque já é noite. 
A cochilar no ônibus porque está cansado. 
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. 

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. 
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos. 
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz, 
aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração. 

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. 
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. 
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. 
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. 
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. 

E a ganhar menos do que precisa. 
E a fazer filas para pagar. 
E a pagar mais do que as coisas valem. 
E a saber que cada vez pagará mais. 
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra. 

A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes. 
A abrir as revistas e a ver anúncios. 
A ligar a televisão e a ver comerciais. 
A ir ao cinema e engolir publicidade. 
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos. 
A gente se acostuma à poluição. 

As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. 
A luz artificial de ligeiro tremor. 
Ao choque que os olhos levam na luz natural. 
Às bactérias da água potável. 
A contaminação da água do mar. 
A lenta morte dos rios. 

Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, 
a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta. 
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. 

Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, 
um ressentimento ali, uma revolta acolá. 
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. 
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. 

Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo 
e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado. 

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. 
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se 
da faca e da baioneta, para poupar o peito. 
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta, 
de tanto acostumar, se perde de si mesma. 





Maria Colasanti















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